quarta-feira, 2 de abril de 2014

Sabático


O navio parece estar afundando. Claro que não é nada dramático, titanesco. É lento, praticamente imperceptível. Não tenho como provar (e duvido que teria disposição de tentar, ainda que pudesse), mas não consigo ignorar essa sensação intensa de que há algo severamente errado.
Ultimamente tenho observado mais atentamente os rostos das pessoas e percebido que a maioria dos passageiros não parece particularmente feliz. Não é uma tristeza aparente, não é que as pessoas andam arrastando os pés nos corredores, caminhando taciturnas e cabisbaixas pelos corredores do navio. Pelo contrário, quase todos sorriem, socializam, se arrumam. Passam horas jogando no cassino do terceiro andar, carregando as fichas de madrepérola coladas ao corpo. Na hora das refeições, invariavelmente se empanturram no bufê. 
Confesso que também ando comendo compulsivamente. Outro dia, enquanto tomava meu café, reclinado na cadeira, comentei que tinha comido demais. A mulher sentada ao meu lado cobriu um arroto silencioso com a mão e olhou para mim como quem diz “sei exatamente o que você está dizendo”.  “E a comida nem é boa!”, eu disse.  Ela comeu mais um pedaço de bolo e me disse com a boca ainda cheia: “Mas é tudo incluído!” Não é à toa que tem tanta gente obesa à bordo.
Hoje à tarde ouvi de novo o boato. O velhinho da boina surrada estava mais uma vez falando que alguns passageiros foram jogados ao mar. As pessoas em volta, ao invés de censurá-lo, ficaram  o encorajando, dizendo ai que horror, que absurdo. Saí de perto. Gente demais confinada. Idiotice e tédio são uma mistura perigosa.
Não sei o que está acontecendo com o tempo. Antes ele era invisível, agora as horas estão derretidas, os minutos viscosos. Não sei quanto falta para o cruzeiro terminar, mas acho que ainda deve faltar muito. A maior parte dos passageiros parece nem sequer pensar a respeito. Quando pergunto, dizem sei lá, claramente incomodados em confrontar a questão. Minha paranoia e meu desconforto só aumentam. E essa estranha sensação de urgência, o pânico num cochilo leve dentro do meu peito. 
A comida está cada dia menos tolerável. No almoço de hoje percebi um verme branco com a cabeça escura na pasta de berinjela. Aproximei o verme do rosto para ter certeza de que não era um carocinho preso numa fibra do legume. O senhor grisalho sentado ao meu lado disse: “é a fibra da berinjela” e a moça à minha frente comentou casualmente: “é proteína, pode comer”. Um jovem que parece uma versão mais nova de mim mesmo me olhou com carinho (ou pena, preocupação) e perguntou, num jeito que me pareceu exageradamente cauteloso:  “Como você sabe se não caiu no seu prato do vaso do centro da mesa?”  
Pode ser. Mas a flor do vasinho no centro da mesa é de plástico. 

Pedalo na bicicleta ergométrica e finjo aumentar a potência quando a instrutora da aula de spinning grita sorridente: “vamos aumentar o peso para nove, turma!”. Nem simulo esforço e comento com a moça de cabelos castanhos encharcados de suor da bicicleta ao lado: “nem tirei do peso um”. Ela ri, não acreditando ou fingindo não acreditar. Ela está pensando: “por que alguém faria isto? E se a instrutora perceber? Qual a vantagem de fazer essa aula sem seguir a professora?”
Essas perguntas também me ocorrem, mas não de forma retórica. Suspeito que as respostas que estou procurando são diametralmente opostas às da moça. 
Parei de participar das atividades diurnas do navio. Fiquei um pouco aliviado e um pouco magoado por ninguém ter percebido. Talvez a senhora elegante do colar de pérola tenha notado. Não sei porque, mas ela gosta de mim, se importa comigo. Engraçado, passei anos odiando todas essas atividades, mas não participar delas é um pouco triste e solitário. Sinto-me alienado, inadequado, como se estivesse errando em alguma coisa elementar. Errando? É, errando.
Tirei o relógio do pulso para resistir à compulsão de olha-lo a cada dois minutos. O  tempo se recusa a passar. A noite avança a conta-gotas.  Resolvo levantar da cama e caminhar um pouco para espairecer. O ar-condicionado está mal regulado. Dentro do navio está quente demais, no convés frio demais. Estava suando no lado de dentro e agora estou batendo os dentes aqui fora. Não consigo encontrar uma zona de conforto. 
Esperam que todo mundo participe da grande gincana. Não se fala em outra coisa. Será que as pessoas estão realmente mobilizadas e ansiosas ou é algum tipo de histeria coletiva? Me tranco no quarto e finjo que estou dormindo, como se alguém pudesse me ver. Me viro e reviro, o corpo doendo, a cama parece mais dura do que nunca. Resolvo abrir o frigobar e beber as garrafinhas de vodca e uísque e  vou direto para a dor de cabeça, sem passar pela leveza da ebriedade. Como as pessoas conseguem viver sem se preocupar com a merda desse cruzeiro? Como eu consegui durante tantos anos? O que será que posso fazer para parar de pensar no assunto? Deito com o travesseiro em cima da cabeça pensando no McMurphy do "Estranho no Ninho". 
Acordo ainda com ressaca e dor de estômago. Começo a catalogar argumentos a favor de abandonar o navio para tentar fortalecer minha resolução. Alguns são genuínos, muitos são desonestos, obtusos, impertinentes. Converso com a tripulação, pergunto obliquamente sobre alternativas. A maioria suspira e diz não saber nada, mas um garçom de cabelos brancos me convida para um trago depois do turno dele. Espero ansiosamente.
Ele pede cachaça pura. Eu acompanho.
“Dizem que há outras embarcações menores, veleiros e traineiras, que fazem rotas diferentes.”
“Que rotas diferentes? Como é que conseguem escapar das correntes marítimas?”
“Não sei. Conheci uma moça que pulou do navio. Um colega meu foi atrás. Dizem que casaram e vivem num pesqueiro, perto do litoral.”
“Dizem? Quem?”
Ele dá de ombros.
“E como eles podem sobrevivem fora do navio? Como se protegem das intempéries? O que eles comem?”
Ele me encara e percebo, pela primeira vez, o glaucoma que enevoa seu olho esquerdo.
“Peixe?”
“Peixe? E todas as outras vitaminas? E água fresca, frutas, açúcar, grãos? E alcool?”
“Não sei. Faz muito tempo.”
“Como você pode saber se é verdade? Talvez eles tenham morrido no mar.”
Ele olha para o próprio copinho vazio e enfia a língua gorda nele para pegar as últimas gotas da cachaça. Ofereço outra dose, mas ele recusa com um sutil aceno da cabeça.
Hoje fiquei namorando o mar, cansado e frustrado, debruçado sobre o gradil. A segurança do grande navio não me pareceu tão relevante nem o mar aberto tão ameaçador. Tive vontade de pular, mas lembrei que não estava sozinho e isso doeu mais do que todo o resto. Minhas ações tem efeitos sobre outras pessoas, especialmente aquelas com as quais mais me importo. Fiquei apertando os olhos procurando sinais de outras embarcações no horizonte até o sol se por. Essas solidões rodeadas de gente são enlouquecedoras. Tantalus condenado a viver eternamente num vale verdejante onde as árvores de frutas maduras estão quase a seu alcance e as águas cristalinas escoam para longe toda vez que ele tenta matar sua sede nelas.
No final das contas, tudo resume-se ao momento do foda-se, quando sinto que não tenho nada a perder,  ou talvez quando já estou pronto para perder tudo. Acordo e resolvo não pensar mais no assunto. Sem tomar café da manhã, sigo, com uma leve vertigem, pelo caminho da minha cabine até a proa do navio. Sei que não posso hesitar. 
Escalo o gradil e pulo para o mar.
Nos breves segundos entre soltar-me do navio, afundar na água e reemergir, sinto um grande alívio com a certeza irracional de que vou morrer. É aquela sensação de cair um degrau no início do sono. 
A água está tranquila, translúcida, morna. Pareço o dial de um rádio sem antena, só percebo ruídos de alívio, medo, satisfação, orgulho, vergonha (3 a 2). Meus temores mais profundos, os cenários mais sombrios elaborados pela minha imaginação doente não se concretizam. Não há barbatanas de turbarão rasgando a superfície, tempestades se formando, ondas gigantes, leviatãs. Não entro em pânico, não engulo água e não me afogo. Boiando no infinito caldeirão, o medo parece distante e despropositado, infantil. Os músculos do meu rosto formam um sorriso. Percebo com intensidade lisérgica a brisa suave que lambe meu rosto molhado, o farfalho do mar, o gosto saudável do sal na boca. 
Interessante. O tempo passou surpreendentemente rápido. Já estou no mar há algum tempo e agora minhas roupas encharcadas estão pesadas. Manter-me flutuando é marginalmente incômodo, minhas pernas um pouco cansadas. O sal pinica meus olhos. O sol queima meu coro cabeludo. Torço para que ele se ponha logo. Se bem que talvez a noite não seja tão melhor. O desconforto  é muito menor do que aquele que eu sentia a bordo, mas sei que é um aviso. Preciso me mover, não posso ficar boiando a vida toda à mercê do oceano.
Começo a nadar, alternando braçadas vigorosas com um nado cachorrinho que é quase não nadar. De tempos em tempos, descanso, boiando de barriga para o céu, respirando fundo. Depois de cada inspiração, meu rosto afunda um pouco abaixo da superfície e meus sentidos sintonizam outra frequência, alienígena, subaquática. Tenho vontade de ficar submerso para sempre, mas minha cabeça começa a doer com a carência de oxigênio. Ainda não é hora. Volto a nadar, dessa vez para o lado oposto. O tempo passa rápido e me vejo imerso nas estrelas que brilham no céu e no espelho negro do mar. 
Quando sinto que os músculos do ombros estão se aproximando da fadiga completa, alterno o estilo. Continuo sem nenhum senso de orientação. Não sei para onde estou nadando, se estou percorrendo círculos,se estou rápido ou devagar. Nunca prestei atenção nas constelações, sem outras pessoas para seguir, não tenho nada para me orientar. Olho para frente e continuo a bater braços e pernas com regularidade, dissipando minha raiva num cansaço estoico.  Tanta raiva entranhada sumindo nesse esforço brutal que apaga a consciência. Se pelo menos eu acreditasse que poderia ser assim para sempre.
Talvez algum barco passe por aqui. Talvez uma corrente me leve a uma praia paradisíaca numa ilha pristina onde atracam majestosos veleiros de filmes de piratas. 
Talvez ainda possa nadar de volta para o Navio. Vai dar trabalho, vai ser cansativo, pode não dar certo. Mas mesmo que não encontre o navio do qual pulei, certamente acabarei encontrando outro semelhante.
Todos os navios que conheço tem a mesma rota circular.
Inevitavelmente vou cruzar com algum.
Continuo nadando. Não mais pela perspectiva de chegar a algum lugar, mas pelo prazer do exercício e pelo conforto que sinto em saber que sou capaz. Talvez uma uma embarcação nova me resgate. Talvez não. Talvez eu acabe fugindo de novo para o Navio, para o conforto da rotina, para as mesmas atividades, deixar lascivamente minha vida ser comida pelas beiradas.
Tudo bem. Pelo menos agora já sei como é bom, como é ruim, como é estranho estar no mar.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Proposição de desnegócios #1: Agência de despropaganda

Durante muitos anos, meu sonho era me tornar um grande publicitário. Na época da faculdade, passava horas assistindo a vídeos de propagandas premiadas, com meu grande amigo Marcelo Galdieri, com a alegria inesgotável de uma criancinha revendo dez vezes o mesmo episódio do Teletubbies. Meu primeiro estágio formal foi na agência Talent, depois de ler o livro do Julio Ribeiro em uma noite, pesquisas e acompanhando grupos de foco. Até usei duas propagandas como material de base para  o TCC que fiz em parceria com o Marcelo - o Book of Life, uma empresa que gravaria entrevistas com os clientes ao longo da sua vida e se responsabilizaria pela guarda dos vídeos por tempo indeterminado, com acesso para a família, no tempo em que armazenar na nuvem era coisa de desenho animado.

Nos últimos anos recentemente tenho ficado cada dia mais irritado com propagandas, especialmente as de TV. Há uma palavra em inglês para desonesto que acho maravilhosa e não conheço equivalente em português, "disingenuous", que conota
2. Campanhas:

  • Você nem é capaz de perceber a diferença.
  • Você realmente precisa disso?
  • Você não vai usar 10% do que está sendo anunciado.
  • Você acha que isso é realmente bom pra você?
  • É tudo igualmente ruim, escolha o mais barato. Você não precisa de etiqueta
  • Qual foi a última vez que você viu modelos bebendo cerveja num boteco?
  • Quando você ficou tão feliz de falar sobre um banco? E o seu filho de 2 anos?
  • A velocidade máxima no Brasil é 120km/h
  • Você acha que essa atriz / personalidade consome mesmo esse produto?
  • O desempenho que você precisa é maior do que o melhor que existia há um ano?
  • Na vida real não é tão apetitoso. E você termina se sentindo mal.
  • O controle remoto está na sua mão.
  • Depois você diz que não tem tempo pra nada...

Escala de interrogação por ordem decrescente de felicidade geral com a vida


1. Sem interrogação 
2. Quando 
3. Como 
4. O que
5. Por que 

Carpe Diem, só antes de dormir

Ontem assisti ao About Time, escrito e dirigido pelo Richard Curtis (o roteirista do Quatro casamentos e um funeral). Eu já sabia o que me esperava, porque já tinha lido a crítica corrosiva do The Globe and Mail descrevendo o filme como  “uma telenovela de bebês, momentos emocionantes, pequenas crises e lições sobre saborear cada dia.” O Anthony Lane da New Yorker resumiu assim: “Algumas pessoas vão seesbaldar na calorosa fachada de inocência; outras vão buscar o seu Voltaire.

Entendo perfeitamente e até concordo com o cinismo. Mas chorei feito uma menininha que acabou de cair da bicicleta e ralou o joelho. Comédias românticas e filmes pós-apocalípticos desarmam minhas faculdades críticas (e minha compostura).

O filme é sobre um rapaz que descobre que os homens da sua família podem voltar no tempo para qualquer ponto da sua própria vida, sem grandes riscos de efeitos borboleta catastróficos ou consequências relevantes. Tudo, obviamente, não passa de artificio para nos convencer a apreciar os pequenos milagres, curtir cada momento da nossa “extraordinária vida ordinária”, como diz o protagonista no monólogo em off, no final do filme.  No final das contas, aprendemos com o filme, você nem precisa viajar no tempo para saborear cada dia.

Fui dormir matutando: “É claro, o importante é mesmo saborear cada momento, não se preocupar tanto, curtir a família, ser feliz! O pai do protagonista se aposenta aos 50 anos para jogar pingue-pongue com o filho e tomar chá na areia da praia gelada da Cornuália. Por que eu não posso fazer o mesmo? Relaxa e Carpe Diem!”

No dia seguinte, acordo ansioso. Tenho uma entrevista marcada na rádio Estadão sobre “como equilibrar a carreira (sic) de escritor com a vida executivo em TI (sic também)” e é claro que quero falar coisas interessantes, parecer inteligente e divertido. Leio um artigo sobre a faláciadas 10.000 horas do Outliers do Malcom Gladwell no Brain Pickings. Depois uma resenha sobre o “Focus”, o mais recente  livro do Daniel Goleman (aquele do Inteligência Emocional), que nos lembra que a receita para o sucesso, ou pelo menos para o alto desempenho é foco e treino deliberado. A diferença do treino deliberado para o treino ordinário é que o foco é no erro, no desconforto. Aparentemente, pesquisas mostram que violinistas que treinam as partes difíceis e incômodas das peças são melhores do que aqueles que treinam sempre tudo (porque é muito mais gostoso treinar as partes que você já domina).

Então, saindo de casa, carpe diem enfiado no fundo do bolso, sigo na direção do desconforto, mais uma vez. Eu nem gosto de pingue-pongue.